Música, cor, confetis e muita alegria, é o que me vem à cabeça quando se fala em Coliseu Micaelense. Para além do recomeço dos amados e afamados bailes de Carnaval, o Coliseu é um espaço que me traz um historial de recordações muito maior, desde que me lembro. Chegava ao portão e entrava, com pezinhos de criança, muito devagarinho com medo da «Brigitte» - nome dado à cadela que lá vivia sustentada, pelos restos de comida do restaurante com o mesmo nome (Coliseu), e por uma ou outra alma caridosa que achasse que o pobre do animal, às vezes, tinha direito a uns ossinhos por bom comportamento ou apenas por existir e ser o que era. - E os filhotes da cadela quando vieram! Que alegria, que excitação olhar, junto com a minha «maninha», para o que mais parecia um conjunto de cães de peluche que se movimentavam a pilhas, de tão fofos que eram, todos pretos e castanhos.Depois subia as escadinhas de pedra para ir até aos escritórios, ver como estava ou fazer uma surpresa ao meu avô, que lá passava o dia no meio de papéis, bilhetes e cartazes cinematográficos, na sua grande sala iluminada com quatro amplas janelas. Era uma delícia poder sentar-me na (s) secretária vazia (s) (sim, pois os colegas iam-se com o tempo!) e fingir que trabalhava lá também! E a antiga máquina de escrever? Que encanto poder mexer-lhe, sem qualquer tipo de responsabilidade, apenas por que me apetecia!Corria todo o edifício, vasculhava cada um dos seus «segredos» e, muitas vezes, ao fim da tarde esperava-nos sempre um maravilhoso gelado caseiro, que se encontrava à venda na entrada do Coliseu. E tinha de ser de chocolate, o que era raro faltar! Tendo sorte na hora em que lá ia, ainda “apanhava” os ovos e o leite a serem postos na máquina, que depois transformava tudo aquilo em algo cremoso e de um sabor que, verdade seja dita, nunca mais encontrei igual. Era o sabor de ser criança!Mas ir atrás do palco era das partes mais divertidas. Até podia imaginar que estava a decorrer um espectáculo, com a particularidade de que teria, eu mesma, de interpretar os diversos personagens que me fossem surgindo nas ondas da imaginação. E os camarins, com todas aquelas luzes em volta do espelho, que faziam sentir a mais simples criatura na maior estrela do planeta. Dava gosto ali estar e imaginar estes cenários cheios de movimento e de ritmo!E a antiga cavalariça, ao lado do palco ( que actualmente serve de bar nos bailes) toda cheia de palha e com três ou quatro elefantes enormes, que passavam o tempo a comer ou a levantar a tromba e a fazer um barulhão, como se estivessem a dizer: “Estou aqui!”? O medo de me aproximar e o fascínio que estes animais exerciam sobre mim, quando não tinha ainda nem dez anos, faziam com que ali permanecesse, sem lhes tocar mas sem me ir embora. Depois, num ápice de coragem ou de medo esquecido lá lhes tocava com a ponta dos dedos e, eles quase nem se apercebiam, tal era o seu tamanho! Estava perante a Selva trazida para a cidade, não por muito tempo, mas pelo suficiente. Com alguma vegetação em volta destes «donos de marfim», diria agora que estava em África, em pleno Safari! E a pista, em que estado lastimoso ficava depois da actuação de todos esses animais na altura do Circo! Mas nada que não se resolvesse! Empregadas de limpeza, electricistas, enfim; já todos nos conheciam. “São as netas do «avô» “! E nos bailes? Chegávamos logo cedo, pois íamos com o avô! A nossa mesa, como lhe chamarei sempre nem que passem cem anos, na primeira geral já nos esperava. Era o tempo de nos instalarmos, de pormos os acepipes em cima da mesa saídos das cestas enfeitadas com tule vermelho e fitas e, íamos “explorar” o espaço, como da primeira vez se tratasse, ou para junto do querido avô, que tinha sempre um elogio para nos dar quando nos via vestidas a preceito para a ocasião. Dançávamos com ele, sentávamo-nos nos degraus da geral a apreciar o ambiente e, no fim, lá pelas 7 ou 8 da matina, havia chegado a hora de guardar os tupperwares, que estariam cheios de confetis se não fosse a cautelosa da minha avó a pôr-lhes sempre a tampa, evitando assim que comêssemos papel, para regressar a casa por vezes com os sapatos na mão, pois tinha sido uma noite em cheio.Voltando ao presente, ainda na semana passada aquando da homenagem a quem por direito, nas paredes deste Coliseu romano em Ponta Delgada, uma dessas pessoas que pensava já nem se lembrar de nós, veio cumprimentar-nos e fiquei feliz. No fundo, quem morre sempre cá fica, nem que seja na memória de quem o ama, alguém que, mesmo volvido muito tempo, não se esquece do que fazia, vivia e sentia junto dos que “injustamente” partem, para saudade dos que ficam com uma mágoa e com um vazio que nem o tempo pode preencher. Resta-nos aprender a viver, sem conviver com os que nunca mais esqueceremos e imaginá-los sempre perto de nós, nos momentos em que sabemos que estariam alegres e felizes, ainda sem se lembrarem que a morte não perdoa a ninguém e, imaginando que seria bom serem eternos e ficarem eternamente presos aos momentos em que puderam olhar-nos nos olhos e dizer: “O avô gosta muito de ti”. Desejava apenas ouvir essa frase para o resto da vida.
Raquel Moreira
Public, "Correio dos Açores", 2005.
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