terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Rui de Carvalho: um amante do teatro no palco e na plateia!

UM ACASO DO DESTINO, FÊ-LO SUBIR AO PALCO AOS 9 ANOS DE IDADE. GRAÇAS A “PALHAÇO DE MIM MESMO”, RUI DE CARVALHO VISITOU, MAIS UMA VEZ, OS AÇORES,ACOMPANHADO PELA FAMÍLIA!
AM- Nome Completo.
RC- Rui Alberto Rebelo Pires Carvalho.
AM- Fale-nos um pouco da sua história de vida.
RC- A minha vida sempre foi muito o teatro, foi a Arte que eu escolhi. Tive irmãos actores, uma irmã pianista. E, tudo isso, foi proporcionando através dos tempos a minha ligação ao teatro, que é muito grande e amorosa. Só tive que descobrir se tinha, ou não, jeito. Acho que tinha um bocadinho e cultivei-o. Hoje tenho 64 anos de vida teatral (59 como profissional e 5 como amador) e de espectador também. Foi algo que acompanhei sempre. Desde que comecei a entender, comecei a ir ao teatro e a ver espectáculos. Sou um homem que gosta de espectáculos, que gosta de ir. Além disso, sou bom público! Gosto de apreciar o trabalho dos artistas, gosto de ver os meus colegas irem bem, quanto à parte do que diz respeito ao teatro, gosto de ver dançar bem, gosto de ver tocar bem. Gosto muito e preencho muito da minha vida, com esse aspecto cultural.
AM- Já tinha vindo aos Açores?
RC- Muitas vezes. A primeira vez que vim aos Açores tinha 10 anos. Tenho 79! Já venho aqui há muitos anos. Conheço muito bem tudo isto, já trabalhei em todas as ilhas. A própria peça “Palhaço de mim mesmo” levou-nos à Terceira, ao Faial e trouxe-nos também a São Miguel, ao Teatro Ribeiragrandense.
AM- Como e quando entrou para o mundo do teatro e da televisão?
RC- A oportunidade surgiu na Covilhã, quando eu tinha perto de 9 anos. O meu pai era oficial do exército e, um dia, proporcionou-se eu entrar numa festa de beneficência e fiz um papel. Então, vi que era capaz de entrar. Foi talvez aí que surgiu uma mola, a mola que alimentou, que incrementou, que deu vida à minha carreira.
AM- Era essa a profissão que pensava seguir, quando era pequeno?
RC- Houve um período em que não sabia, mas aos 15 anos descobri que sim. Quando tinha cerca de 15/16 anos, fui para o conservatório. Deu-se um acontecimento, aliás dramático, de uma colega, uma grande actriz, que morreu. E fui encontrado por pessoas que conheceram os meus irmãos e que trabalharam com eles. Perguntaram-me se eu também queria e eu aceitei. Mas não me deixaram trabalhar sem ter o curso do conservatório. Então, fui fazendo teatro amador, porque eu gosto muito dos amadores. Penso que são muito úteis em todos os aspectos, na formação dos actores e dos espectadores. Portanto, a minha vida começa assim. Nunca tive uma distância muito grande do teatro nem das coisas do teatro.Há uma outra profissão que gostaria de ter seguido, a de médico. Já fiz várias vezes de médico e era uma profissão de que eu gostava. Tem a ver com diagnósticos, tem a ver com o conhecimento das pessoas, com o seu estado de saúde físico e mental. É verdade, as pessoas têm que evoluir mentalmente e fisicamente. Evoluem para o bem ou para o mal.
AM- Que comentários faz à sua carreira?
RC- Penso que é positiva. Não vou dizer o contrário. Mas não o é em todos os sentidos. Não sou muito infeliz, mas há algo que me impede de ser totalmente feliz. A quantidade de companhias de teatro que nós devíamos ter e não temos, alguma pobreza que temos no aspecto artístico, entre outros.A situação do teatro em Portugal não é famosa. Embora eu pense que vai melhorar. Mas não é só disso, que eu tenho pena. Lê-se pouco, há pouco teatro, há pouco bailado, há pouca música. Os escritores não têm muita hipótese de viver da escrita, que é muito pouca. Quer dizer, não é pouca. Publicam-se muitos livros e há muita gente a escrever, mas compra-se pouco. Não sei se depende do problema económico ou, se é um problema de não se ligar nenhuma à cultura. Também pode ser! Mas eu acho que o povo português tem que acordar para isso, porque se melhorar a sua parte cultural melhora como povo, muito mais, do que já brilha. Porque é um povo muito bom, tem que ser é mais interessado pelas coisas do espírito.
AM- Qual o personagem que mais gostou de interpretar até hoje? E porquê?
RC- Tenho interpretado muitos personagens, de que gosto muito, mas fiz um de que nunca me irei esquecer. Foi em “O Render dos Heróis”, uma peça do José Cardoso Pires, na qual eu fazia o cego. Essa figura tinha, para mim, um valor especial, porque era o nosso povo em cena. Um povo que via quando queria e quando não queria, não via. Era cego quando queria, mudava o cartaz que tinha à frente. “Sou cego”, “Não sou cego”. Tudo isto, no espírito da antiga guerra dos liberais e miguelistas. Vinham uns, mandavam embora outros e o povo era o prejudicado. Se vinham outros, mudava o governo, mas não mudava o povo, que era o mesmo que andava sempre para trás e para adiante, a levar nas costas. No fundo, baseava-se nisso. “O Render dos Heróis” foi uma peça que me agradou muito fazer. Aliás, tenho peças na minha vida, na minha carreira, que me deram grande prazer fazer.
AM- A sua participação em “Todo o tempo do Mundo”, visto interpretar um personagem um pouco afectado a nível psicológico, exigiu-lhe alguma preparação especial?
RC- Não. Acho que na nossa vida profissional, temos que observar as coisas. Se tivermos algumas dúvidas quanto a sintomas, à forma de estar, ou porque é que algo acontece, temos apenas que ir à procura de quem saiba, de quem nos possa dizer. Porque quando nós transmitimos um estado de espírito ou físico, temos que aprender porquê. Temos de saber. Porque é que é acontece? o que é que acontece? o que prende? um braço? O que nos faz estar com, ou fazer expressões faciais consideradas menos normais. Temos que saber a razão de tudo isto. O que é que podemos mexer e não podemos mexer. Se nós interpretarmos a personagem de um coxo e nos pusermos a correr, ninguém nos acredita, não é? Temos de fazer as coisas na média, mais ou menos parecidas. Um cego, por exemplo, não é nada fácil fazer, como deve calcular, porque nós vemos, mas os nossos olhos não podem ver a imagem, do que estamos a fazer. Essas coisas têm sempre um encanto e é a nossa fonte, são as pessoas, são os nossos semelhantes. Eu estou num comboio, por exemplo. Se encontrar uma senhora com um tique, ou outra coisa qualquer, que eu veja que me vai distrair, eu estou a olhar para essa pessoa para ver como é. Mas claro que não vou fazer tiques de mulher. Normalmente, são tiques de homem, mas há tiques de doenças dos nervos e várias demonstrações físicas que as pessoas têm, sem dar por isso, e que nós temos de captar. Estamos constantemente a observar e a nossa obrigação é essa.
AM- Como rei do teatro em Portugal, que conselhos daria a quem queira enveredar por este caminho?
RC- Coragem, muito trabalho, persistência e, sobretudo, lutar por aquilo que se quer. Tem que se lutar pelo teatro, porque se escolhermos a profissão do teatro, ser bailarino, ou qualquer outra desta natureza, temos de estar cientes de que estas implicam uma luta permanente para vencer.
AM- Se não existisse o teatro, como seria o mundo?
RC- Alguém o inventava. Nós todos representamos na rua uns com os outros, todos os dias. Acabava por haver qualquer coisa de imitativo do que fazemos na vida ou, que pusesse na vida real, algo de teatro. Como é que começaram os egípcios, os gregos, os romanos? As histórias são as mesmas, os defeitos das pessoas são os mesmos, as virtudes são as mesmas, os estados de espírito são os mesmos. Tem que haver sempre teatro.
AM- Alguma mensagem que queira deixar aos nossos leitores?
RC- Vão ao teatro, porque o nosso teatro precisa de público! O teatro, o ballet, a música, a leitura, os museus. Tudo o que seja para cultivar o espírito é a minha recomendação. Vão, vão, vão! Nós precisamos muito das pessoas para nos verem, para nos observarem, para nos criticarem.
AM- Projectos?
RC- Quando a vossa revista sair, estarei já a gravar uma novela nova. Ainda não sei qual o nome, mas as gravações começam por volta do dia 25 (de Abril). Estou no início dos trabalhos. Quanto a teatro, lá para o fim deste ano tenho outra peça.
O filho João Carvalho, o conhecido “compadre” dos Malucos do Riso, conta que estar em palco com o pai é “um pouco como gelado com chocolate quente”. Afirma ser “muito bom e terrivelmente aflitivo”, avançando ainda que se conhecem “muito bem” e sabem quando cada um se está a “emocionar” mais.Referindo-se a “Palhaço de mim mesmo”, afirma ser uma peça muito “intensa e densa”, cujo texto transmite qualquer coisa ás pessoas, obriga-as a pensar. O que considera ser também uma função do teatro. “A peça tem a ver um pouco com a redenção de um homem que, para terminar os seus dias em paz, como uma figura que todos nós admiramos como actor, quer terminar a sua vida como um palhaço. No fundo, é uma volta que à criança que todos temos dentro de nós. E ele para se redimir de todas aquelas coisas que o atormentam durante a vida ( e esta peça falava muito particularmente de algumas coisas que se passavam noutras vidas, noutras encarnações. Coisas que aconteceram na sua própria vida, enquanto novo, que não o deixam chegar ao estado kármico de palhaço), tem de se libertar de algumas coisas que tem dentro de si. Para alguns portugueses, homens que têm assistido ao espectáculo, é bastante tocante, porque foi algo que ultrapassou várias gerações em Portugal, a guerra de África. Ele para, um dia, poder morrer em paz, para que a alma repouse descansada, precisa que esta paz seja também interior, não só do corpo.É como se tivesse que acabar com os dramas da sua própria vida, para que a possa ver de uma maneira completamente alegre como um palhaço. Todos nós temos algo que nos amargura e às vezes são coisas tão simples, que, se calhar, basta nós conseguirmos conversar com alguém, libertamos esses fantasmas, numa pequena conversa. Conversa que, neste caso, é ele próprio em mais velho que se revisita, enquanto novo. Ele diz, a determinada altura: “quando eu morrer, tudo desaparece”. Não, não! “Tu é que desapareces e eu é que vou morrer”. É, no fundo, um ir buscar, como se fosse uma máquina do tempo que nos trouxesse atrás, nos permitisse ver onde estava a fonte do erro, onde esteve o momento que, em termos neurológicos ou psiquiátricos, por vezes, nos alteram uma vida inteira e conseguir remediar. Porque sou eu próprio a remediar-me a mim próprio quando mais velho. Por isso, é que o texto é um pouco, é complexo, mas é muito bonito. Isso, para quem pensa que sai sem sentir um pouco tocado de alguma coisa. Eu acho que o teatro não tem a ver só com comédia. Hoje, dá-se muita comedia no teatro. E eu sou, fundamentalmente quase só conhecido por comedia e deu-me um prazer enorme fazer este espectáculo, porque eu sinto que as pessoas estão a sentir desesperadamente lá dentro e até quase que engolem em seco. E é muito agradável e toca-nos a todos a certa altura da vida.O netoHenrique Carvalho Ferreira Marques, que também veio visitar os Açores, apesar de reconhecer ser “complicado” falar do avô, caracteriza-o como “compreensivo e porreiro”. “Dá para desabafarmos com ele. É um avô igual aos outros. Basicamente, é isso”-acrescenta.Explica ainda que, “em pequeno, ia muitas vezes ao teatro”. Agora é que já não vou tanto, porque o meu avô também já não faz tanto. Mas íamos ao teatro várias vezes e falávamos de teatro em casa”.Quanto à sua participação em “Olhos d’Água”, Henrique esclarece que, quando Rui de Carvalho estava a gravar “Todo o tempo do mundo”, ficou com “a ideia na cabeça, de que queria entrar numa novela”. Fez o casting e entrou. Afirma ter sido uma experiência “gira, mas nada de especial”, pois diz não gostar do “ambiente, não é para mim”- desabafa, revelando ainda que pretende seguir o caminho das “Artes, Desenho, à volta disso. Fazer bandas desenhadas ou Designer Gráfico”.A peça e o autor:Paulo Fernando Cabrita Mira Coelho, autor da peça e genro do actor, explica que Rui de Carvalho comentou um dia, que nunca tinha representado um palhaço, pedindo-lhe que escrevesse um texto, onde o pudesse fazer pela primeira vez. “Foi aí que nasceu a peça, com alguma dificuldade”- confessa, pois nunca tinha escrito à volta de um palhaço. “Mas foi um desafio interessante”.Quanto à história propriamente dita, Paulo Coelho afirma ter procurado qualquer elemento, que ligasse a peça a Rui de Carvalho. “Uma vez, que ele queria representar um palhaço, também era interessante que a peça, passasse por algum episódio da sua vida, que me servisse de arranque”- esclarece, avançando ainda que “algo que se passou quando ele era miúdo, tinha cerca de sete anos. Esse episódio utilizei-o logo a abrir a peça e esta foi se desenvolvendo e desabrochando à volta desta etapa da sua vida”- enfatiza.Como era importante introduzir também João de Carvalho, no “Palhaço de mim mesmo”, surgiu a ideia de fazer com que, fossem ambos “o mesmo personagem em idades diferentes e representando duas épocas diferentes de uma pessoa qualquer”.O enredo gira à volta de uma “redenção, que era necessária num confronto entre a maturidade de um idoso e os traumas e a ingenuidade, e a desistência e os medos de uma meia idade de um português, que passou pelo 25 Abril, pela guerra do Ultramar, por uma série de pequeninos ou de grandes traumas, que tiveram muita ou pouca importância na vida dele”- descreve, acrescentando que, é deste confronto que nasce a ideia de se recorrer a um palhaço, como uma figura de “grande bondade, grande beleza e grande pureza”.“O palhaço é a única figura que faz rir as crianças e que nos remete, no fundo, para aquilo que todos temos ou devíamos ter dentro de nós, uma criança”.. “Eu trouxe à baila alguns desses traumas criados por esse personagem, que passou pela guerra do Ultramar e de Angola e que teve uma série de circunstancias muito estranhas ligadas com assassinatos, com a guerra, no fundo. E tentei também ao longo de todo o texto, ir um pouco mais atrás e ligar a insegurança da guerra ( o facto de ele ter ido para a guerra, o ser castigado pela própria guerra), com qualquer coisa que se teria, eventualmente, passado com ele muitos anos antes”.O tema das reencarnações e vidas passadas também não lhe passa ao lado. “Coloquei muitos séc. antes, para dar a entender que, de facto, a vida tem um sentido, que não se resume só ao simples ‘nascer, viver e morrer’. Andamos cá por alguma coisa e com algum sentido. A ideia foi começar uma história muito atrás, verificar que essa história continua um pouco mais à frente e, acaba por ser resolvida, ou não, no acto, na actualidade da própria historia da peça. Logo, as encadeações tinham aí alguma razão de ser. Eu acredito nisso, e essa perspectiva é o que ponho de meu, na própria historia da peça.O “Palhaço de mim mesmo” está já à venda em livro, com o mesmo nome. O autor reconhece ser “raro e difícil conseguir-se editar livros de teatro, até porque têm uma venda muito restrita. São coisas muito fechadas, mas houve um editor que se interessou por isso e, felizmente, isso aconteceu”.Outra peça de Paulo Coelho, que será igualmente editada em livro e que tem estreia marcada para Novembro/Dezembro, no Teatro Experimental do Porto (TEP) é o mito de “Morgana”, na qual Rui de Carvalho interpreta o personagem Merlin. “Trata-se de uma interacção entre a figura da Morgana na corte do rei Artur e, uma série de problemas que se ligam, hoje em dia, à mulher em si”.E continua: “É como se uma mulher especifica, representante de todas as mulheres que não conseguem dar à luz, ser mães, se interrogue. “Porque razão fui feita mulher e não consigo ser mãe?”- adianta, reconhecendo ainda a existência de uma espécie de “anacronismo”, no qual Morgana é utilizada, para explicar que pode haver uma razão para isso. Razão que pode passar por “comportamentos desta personagem histórica, que num determinado contexto histórico, explica a razão daquilo tudo acontecer ali”.

Raquel Moreira
Public in "Atlantida Magazine", Maio 2006.

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