quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Há falta de cultura!

Álvaro Raposo França

Algumas pessoas dão o devido valor à arte, mas o número é bastante "restrito". E "infelizmente, existem "muitos responsáveis públicos" que optam pelo "mais barato", o que considera ser "falta de cultura". O pior é que irá passar muito "tempo", até que se denotem mudanças positivas neste contexto. Segundo o escultor Raposo França, os professores de Educação Visual também têm "muita responsabilidade" nesta área, avançando que quando leccionava, a sua preocupação "não era criar artistas". Quem não tenha jeito para desenho, pode "apreciar", pois "as pessoas para gostarem de uma coisa não precisam de saber fazê-la".

Desde pequeno que gosta de modelar e tudo começou quando o pai lhe deu um pouco de barro, quando se encontravam de férias nas Furnas.
Nasceu em Ponta Delgada e, em 1960, foi estudar para a Escola Superior de Belas Artes do Porto em 1960, curso que terminou cinco anos depois. Leccionou no ensino secundário até 1989 e acabou por ir para formador de Belas Artes em Lisboa, onde ficou até se reformar. Mas "paralelamente" a essa actividade lectiva, sempre trabalhou em escultura.
A sua primeira exposição individual, recorda, foi em 1972 no antigo Colégio do Infante. Antes já tinha exposto, mas em conjunto (desde 1961), na escola do Porto e depois com colegas em "vários" locais.
O interesse pela escultura surgiu desde "muito cedo", pois apesar de ainda não saber se seguiria esta área, "sempre gostou muito" de modelar.
"Tinha 5 ou 6 anos e estava a passar férias nas Furnas, quando o meu pai me deu um pouco de barro para eu estar entretido. Comecei a moldá-lo, gostei e ao contrário da maioria dos miúdos que, aos 12 ou 13 se anos, se desinteressam por moldar barro ou plasticina, eu continuei a gostar e ainda hoje gosto de mexer em barro e modelar"- acentua.
Referindo-se à sua exposição que se encontra patente no Centro Municipal de Cultura até 26 de Outubro, o artista conta que o primeiro trabalho é de 1999, sendo esta composta por peças realizadas num espaço de "quase 10 anos".
Em simultâneo com a escultura, Álvaro Raposo França lembra ter outras actividades de escultura, como "encomendas de bustos e estátuas", peças que desenvolve nos seus "tempos livres". Mas, sublinha, o artista não considera a escultura como um "passatempo". Esta é, sim, quase uma "obsessão, porque todos os dias faz qualquer 'coisa', nem que seja desenhar, imaginar ou por uma ideia em prática".
A mensagem que pretende transmitir afirma estar "implícita" nas suas obras, avançando preferir que as pessoas a "descodifiquem". Neste contexto, explica, a mensagem surge através da "volumetria" da escultura, neste caso.
Questionado sobre o que o leva a ter uma ideia para uma peça, o escultor afirma não acreditar muito na "inspiração", avançando que esta tem "muito" que se lhe diga. A seu ver, a ideia surge do próprio trabalho. "É como comer cerejas, começa-se a comer e nunca mais acaba"- salienta, acrescentando que "cada ideia faz surgir outras" e assim sucessivamente, pois trata-se de uma "corrente continua". Além disso, argumenta, se a pessoa trabalhar "sempre", a inspiração existe. Mas se parar, o indivíduo fica a "olhar para a lua à espera que a inspiração" chegue, o que desconfia que aconteça. A escultura é para si uma "obsessão", mas "no bom sentido". É quase tão "normal, como comer e respirar, é algo natural".
Diz gostar de todas as suas peças, mas selecciona a "Ginasta da Fita", uma das primeiras e a que "talvez" tenha mais "impacto", defende.
A cor na escultura é algo que "sempre" existiu, explica. Na escultura clássica não havia cor, revela, mas com os gregos e os egípcios as pedras tinham cor e estes chegavam mesmo a "pintar o bronze". Aliás, há escultores "contemporâneos" que pintam as suas peças, salienta, avançando ser geralmente "muito sóbrio" no que toca às cores. Não costuma pintar, partindo do próprio bronze. E quando são outros materiais, como o ferro, geralmente pinta as peças de "vermelho ou amarelo", cores mais "chamativas". É quase como "sublinhar uma frase a vermelho", para se ver melhor.
Quanto à situação actual da arte, o escultor afirma que "algumas" pessoas lhe dão o devido valor, embora em número bastante "restrito". Aproveita também para dizer que, "infelizmente, há muita gente que não lhe dá valor", acrescentando que aqueles que se espera que valorizem a arte, "não" o fazem.
O artista vai anda mais longe ao afirmar existirem "muitos responsáveis públicos", que optam pelo "mais barato" e vão buscar artistas ou fazedores destas coisas (pode ser arte ou não), o que considera ser "falta de cultura". E, lamenta, passará muito "tempo", até que se denotem mudanças positivas neste contexto.
Por outro lado, o ex professor reconhece que os professores de Educação Visual também têm "muita responsabilidade", nesta área. Quando estava a leccionar no secundário, sublinha, a sua preocupação "não era criar artistas". Os alunos diziam não ter jeito para o desenho, mas "podiam apreciá-lo", justifica, acrescentando que "as pessoas para gostarem de uma coisa não precisam de saber fazê-la". Falando de si próprio, Raposo França revela gostar muito de ouvir música, mas não pensa tocar nem cantar. O mesmo acontece, com as artes visuais.
A nível das escolas, o incutir um sentido estético nos alunos, é algo que segundo o artista tem de ser feito, mas é um processo que dura "gerações". Ainda há pouco tempo, recorda, havia "muito poucos" professores formados em Educação Visual.
Os curiosos é que davam aulas, revela, lembrando-se que certo dia lhe disseram que seria o professor de "matemática" a dar a aula de Educação Visual. Isto, para "desanuviar um bocado e para não sobrecarregar os alunos com muitas horas de matemática". E num contexto destes, as 'coisas' "não funcionam". Actualmente, o escultor espera que isso já não aconteça, pois sabe que tudo evolui, apesar de ser "devagar".
Estatuário é das áreas em que mais gosta de trabalhar no campo da escultura (peças grandes), porque "dá outra liberdade". Começa por fazer uma peça pequena, que depois é ampliada e aí, já pode "antever" como esta irá ficar. E há uma "simplificação" dos volumes, de superfícies e de espaços, o que é um "desafio interessante".
"Não é pegando num 'bibelot' e pondo-o em ponto grande, que ele vai resultar. A peça que tem ser pensada para ser grande e é dos desafios que gosto mais, embora não se possa estar sempre a fazer estatuário, só vez em quando"- esclarece.
Diz não contabilizar o máximo de tempo que leva a fazer uma peça, mas também já fez uma peça num dia só. Isto, relata, quando fez as provas para professor na Faculdade de Belas Artes. Uma das provas consistia em tirar um tema à sorte e em "oito horas" desenvolvê-lo, em barro ou outro material provisório. "Calhou-me o tema da mudança", algo que, admite, dá muito que falar, pois a própria vida é feita de mudança. Representou o tema através de três mulheres, "uma nova, uma de meia-idade e uma mais idosa", havendo um diálogo entre elas. A peça, tem-na "passada a bronze", mas, hoje, ressalva, não representaria o tema da mesma forma.
Em termos de projectos, avança estar a trabalhar em "algumas" peças, que ainda não estão prontas para serem vistas. Raposo França aproveita para dizer aos açorianos que "visitem a exposição".




Raquel Moreira



Public in Terra Nostra, Outubro de 2008.

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