A alimentação dos açorianos
A grande maioria dos açorianos não toma o pequeno-almoço, o que é muito "prejudicial, sobretudo nas crianças em idade escolar", que passam a manhã inteira a "degradarem as suas próprias proteínas", chegando ao almoço com o "dobro" do apetite. Segundo João Anselmo, nutricionista, outro aspecto preocupante é a "falta de exercício físico", que pode conduzir à obesidade. O médico alerta as escolas e universidades para criarem um espaço para a actividade física, que é fundamental. Problemas de tiróide, bulimia e anorexia são outras das suas preocupações.
Natural da freguesia da Ribeira Seca, da Ribeira Grande, em São Miguel, João Anselmo nasceu em 1961 e fez toda a escola primária e secundária na ilha, até ingressar na faculdade de medicina da universidade clássica de Lisboa. Fez a especialidade no Hospital Curry Cabral e alguns estágios no estrangeiro, nomeadamente na Bélgica, tendo voltado à Região há cerca de 15 anos. "Descobri que queria seguir a área de Endocrinologia e Nutrição, depois de concluir o internato geral"-revela, avançando que considera esta uma área "extremamente interessante". Além de que é uma área em que muito que se podia fazer e onde "há muito em que a pessoa pode ser útil e fazer um trabalho válido, sobretudo em São Miguel".
O homem é um animal de hábitos. Resta saber quais os hábitos alimentares dos açorianos e se estes hábitos são saudáveis. Falamos com João Anselmo acerca destas e de outras questões consideradas relevantes nesta matéria.
João Anselmo, nutricionista, começa por explicar que não se pode dizer que os açorianos, e todas as pessoas em geral nesta fase da história da humanidade e do mundo Ocidental, comem "bem ou mal". Há, sim, um "desajustamento" entre aquilo que se come e o que se consome.
"Aquilo que a pessoa gasta na sua actividade física diária não está de acordo com o que a pessoa come, em termos de quantidade"- ressalva, acrescentando que este desajustamento não se verifica apenas a nível regional, mas "em toda a sociedade ocidental e seguramente também vai atingir os países subdesenvolvidos".
Antigamente esclarece, as pessoas trabalhavam a terra despendendo muito mais energia e o que comiam podia até não ser suficiente. Actualmente, estes trabalhos foram substituídos por profissões de escritório, nas quais as pessoas consomem mais calorias do que as que despendem na pouca actividade física que praticam. Logo, "há de facto um desajustamento entre a actividade física diária, o tipo de trabalho que executam e a quantidade de alimentos que ingerem".
No que toca à qualidade dos alimentos, reconhece que esta "melhorou muito, em termos do refinamento dos alimentos e de higiene". Mas, lamenta, esta melhoria nem sempre se traduziu em ganhos específicos na qualidade. Houve alimentos que foram rigorosamente "renegados", em benefício de outros.
"Nos Açores, comiam-se muito mais hortaliças e vegetais, até por uma questão de economia. Os vegetais e as hortaliças eram baratos, as pessoas cultivavam-nos nos quintais, nas suas hortas e comiam-nos, porque era mais rentável. Era muito mais barato do que qualquer outro alimento como a farinha e o próprio pão, que eram caros"- exemplifica, lembrando que por "necessidades e por desajustamento social em termos profissionais" as pessoas deixaram de cultivar as suas hortas, deixaram de ter possibilidades, tempo ou motivação para cultivar as suas hortas e comer as hortaliças e mesmo as frutas e passaram, mais "comodamente", a comprar alguns alimentos como cereais enriquecidos com frutos ou com vitaminas. "Houve uma tentativa de simplificar a alimentação e torná-la mais fácil e acessível, que se traduziu num efeito negativo no comportamento alimentar".
Questionado sobre quais os maiores erros de uma má alimentação, João Anselmo salienta que, antigamente, nos Açores cometiam-se "erros alimentares graves", mas estes não tinham o "impacto" que têm actualmente, porque "as pessoas tinham outro tipo de actividade. Andavam muito a pé, pois não havia transportes e trabalhavam muito na terra, pois não havia empregos nos sectores secundário e terciário".
O médico diz não concordar com a ideia de que os alimentos, agora, não prestam. "Claro que a chamada Fast-food é algo que foi modificado seguramente. Ninguém tem dúvidas em relação à Fast food e a alimentos altamente publicitados pela indústria alimentar"- alerta, salientando serem "erros graves", pois trata-se de alimentos refinados com "enriquecimento de calorias, de gorduras" e de elementos que são bons no paladar, mas que não são "nada" saudáveis.
Segundo João Anselmo, ao contrário do que se pensa, o que as pessoas consomem mais são "gorduras, mas do que açúcares." Gorduras estas que, sublinha, advêm de comer fastfood, feita com "óleos não renovados frequentemente, o que os torna muito mais tóxicos". Antigamente, recorda, comia-se banha, uma gordura animal que hoje se considera quase de "terceiro plano". Mas esta tinha a vantagem de resistir muito mais a temperaturas elevadas, ao contrário dos óleos, que são muito mais saudáveis, mas quando levados a temperaturas elevadas transformam-se em verdadeiros óleos "tóxicos".
O "grande excesso de gorduras especialmente saturadas", como é o caso dos óleos das frituras, advém de se ter mudado a qualidade desses óleos, que em si são "bons, pois são polissaturados". É evidente que a partir dos 100 ou 120 graus, tornam-se óleos "extremamente enriquecidos, saturados e são tóxicos".
Ao contrário do que se pensa, a alimentação dos açorianos não é extremamente rica em açúcares. "Já se comeu muito mais açúcar nos Açores"- acentua, lembrando que a Região já teve "beterraba e uma fábrica". E, acrescenta, também já se comeu muito mais fruta. "Havia muito mais fruta em termos transactos. Houve a laranja, o ananás as pessoas tinham árvores de cultivo em casa e comia-se de facto muito mais fruta, que tem também muitos açucares, como a sacarose".
O que há de novo na alimentação em termos de calorias, é a "obtenção de grande parte das calorias a partir das gorduras, sobretudo de óleos severamente deteriorados com o aquecimento".
Álcool, tabaco e café
Referindo-se ao papel do álcool, do tabaco e do café no funcionamento do aparelho digestivo, o médico lembra que o álcool é algo que faz parte da história do homem e existe há milhares de anos. A questão está na "moderação", pois "qualquer tipo de bebida alcoólica moderadamente ingerida e sobretudo em situações festivas, não tem qualquer efeito nefasto". O problema é quando este deixa de ser um "sinal de festa ou de uma refeição", para se tornar em algo repetido e consumido "exagerada e frequentemente".
Em relação ao café, diz que este foi o "motor" das sociedades ocidentais, pois fez com que as pessoas tivessem uma “maior actividade e as sociedades ocidentais progrediram” à custa deste doping. O café é um excitante, provoca um “aumento da frequência cardíaca, um aumento da capacidade muscular e da capacidade intelectual”. Quanto ao máximo de cafés recomendado diariamente, explica que a tolerância ao café é algo muito “individual”, pois há quem não possa nem tomar um café e outros bebem dois ou três. O que está demonstrado é que, para além de efeito de ser excitante, desempenha um papel importante na actividade física e intelectual das pessoas no mundo de hoje, que é “altamente exigente”.
“Nunca se demonstrou que o café tivesse efeitos maus, nomeadamente criando obesidade ou diabetes. Aliás, hoje pensa-se que o café seja um protector em relação à diabetes, por outro lado aumenta o grau de stress nas pessoas que já estão stressadas pela própria natureza da vida, aumenta a ansiedade num maior número de pessoas que já de si estão ansiosas. Pode ser um contributo para a disrupção psicológica e a alteração psicológica em pessoas que já estão com stress. Agora, se são pessoas tranquilas é evidente que este não terá nenhum efeito negativo, à excepção de pessoas que são de facto intolerantes”- esclarece.
E continua, argumentando que quem fala do café, fala do chá, que tem “exactamente a mesma substância”, a teina que é igual à cafeína. Aliás, sublinha, quando a pessoa bebe chá, fá-lo em “muito mais quantidade”, do que numa bica vulgar, ingerindo a “mesma” quantidade de teina no chá. Referindo-se ao chá ou café descafeinado, afirma que isto “nunca teve qualquer sentido”, pois o facto de ser descafeinado não lhe traz “benefício nenhum”. Muitas vezes, ouvimos alguém dizer que tem dores de cabeça, pois ainda não bebeu café. João Anselmo explica ser possível a pessoa ficar “viciada” no café, porque este tem um efeito excitante “extremo”. “E se a pessoa deixar de o tomar, é natural que se sinta muito mais prostrada. Ou melhor, sente-se como se deveria sentir normalmente, mais relaxada. Logo, precisa de um café para lhe estimular, para lhe melhorar a capacidade física e intelectual e quando não o toma, evidente que retoma o seu plateaux normal de excitação”- acentua.
O tabaco é já uma droga “extremamente grave”, hoje responsável por um “aumento do cancro do pulmão em 8 vezes, aumento das doenças cardiovasculares em 4 vezes”. Em termos estatísticos é um factor “tóxico extremamente grave”, salienta, avançando que se deve ter “muita moderação”, pois é de facto algo extremamente “grave” nas sociedades modernas.
Quanto ao velho hábito de ao pequeno-almoço tomar apenas um café e fumar, o médico salienta tratar-se de um “erro grave”. Não tanto por ingerirem café, mas por o fazerem em “jejum”.
“O organismo humano não foi feito para estar mais de 10 ou 12 horas em jejum, uma realidade estritamente fisiológica. Há animais como os camelos, que podem passar 24 horas sem comer, porque têm fórmulas de acumulação de alimentos, mas o organismo humano não tem essa capacidade. Ao fim de 10 ou 12 horas, a maioria começa a degradar as suas próprias proteínas. Logo, bebendo café em jejum aumenta a degradação das proteínas e não da gordura”- ressalva.
É um erro, explica, dizer-se que 'não se come, para emagrecer’. Não funciona assim, porque o que a pessoa perde nestas alturas são “proteínas e músculo”. Trata-se de um erro “extremamente grave, muito frequente entre nós e de origens culturais”, pois nas sociedades latinas, do sul da Europa jantavam “muito mais tarde”, logo as pessoas não tinham fome ao pequeno-almoço. Enquanto nas sociedades do norte da Europa, as pessoas comem muito mais e têm o hábito de comer de manhã, porque jantam “muito mais cedo”. O que está relacionada com “variações climáticas e culturais”.
Nos Açores, alerta, “há uma larga percentagem, sobretudo de crianças, que vão para a escola sem tomar o pequeno-almoço”. O que é grave, primeiro, porque chegam ao almoço com o “dobro” da fome, além de que interfere com os “níveis de atenção e concentração”. As crianças não tem 'combustível' para funcionarem de manhã, a não ser que tenham de “degradar as próprias proteínas,” o que é muito grave e contribui de alguma forma para a “obesidade”. Os corredores das maratonas, por exemplo, estão sempre a beber água açucarada, porque “têm de ingerir proteínas”, para não degradarem as suas próprias ao longo de um esforço muito grande em actividades desportivas, não para se “hidratarem”. É um erro grave não tomar o pequeno-almoço, “muito mais grave é a pessoa beber um café e/ou fumar”. É fundamental institucionalizar o pequeno-almoço na nossa cultura, o que, lamenta, ainda não acontece. Sem ter feito grandes estatísticas, o médico afirma garantir que, pelo menos, um “quarto ou um terço da população escolar e jovem dos Açores não toma o pequeno-almoço”. Tenho essa percepção, justifica, porque “são muitos os que recorrem posteriormente a consultas de obesidade e quase todos dizem o mesmo”. As crianças não tem apetite, nem o hábito de comer, pois, muitas vezes, a pessoa não tem apetite de manhã, mas tem o hábito e acaba por comer alguma coisa, situação que considera preocupante.
Não se pode dizer que o conceito de alimentação saudável é científico, o importante é que “a alimentação das pessoas deve estar em consonância com a actividade que a pessoa desempenha”. Esta é a primeira “grande meta” em qualquer política de alimentação. Um jovem que pratique duas horas de natação diárias, necessita de muito mais calorias do que alguém que não pratique qualquer exercício física, independentemente de que alimentos vêm essas calorias. Segundo o nutricionista, as pessoas p”erderam um pouco o senso-comum”, em relação ao que devem ou não comer, pois são “bombardeadas” pela indústria alimentar. “Algo mau ingerido muito raramente, é bom, mas ingerido sistematicamente é seguramente tóxico”.
O que se julga que seja, hoje, o mais aproximado a uma alimentação ideal será ingerir o “máximo possível de frutas e leguminosas, pois são alimentos pobres em calorias, ricos em fibras e melhoram todo o transite intestinal”. Necessitamos das proteínas que o ideal é virem, na sua maior parte, dos “produtos lácteos” e, claro da carne. Mas é preciso ter em atenção, que a carne, ou peixe, não deverá ter muita gordura. Há ainda peixes “ricos em mercúrio, que não são muito benéficos”. Entre a carne de porco e a de vaca, “a de vaca é seguramente uma melhor fonte de proteínas”, mas esta vaca depende também daquilo que o animal come. As gorduras, devem-se evitar, “aumentando a ingestão de azeite e de óleos vegetais”, gorduras extremamente “positivas”, quando cruas. Muitas vezes, nem imaginamos onde estão as gorduras ou como são ingeridas, explica, acrescentando que estas existem, pois “o tipo de conservação dos alimentos e a sua manufactura requer em grande parte o uso de substâncias enriquecidas em ácidos gordos”.
Referindo-se à bulimia e à anorexia, o médico avança que apesar de já haver alguns casos, “felizmente” não vivemos “ainda” naquele tipo de sociedade em que existe uma "pressão imensa pela imagem física". Ainda não sofremos o efeito que os protótipos da imagem têm, sobretudo nas adolescentes. As pessoas já têm “alguma preocupação em manterem-se magras”, mas nada que chegue aos limites da anorexia.
Em termos de prevenção destas doenças do foro psicológico, o médico explica que não se podem “inundar frequentemente” os jovens com protótipos de beleza. Para evitar mais casos de bulimia, deve-se “evitar a divulgação da imagem de saúde e de bem-estar em pessoas excessivamente magras e não se pode pressionar os adolescentes” ao cultivo da imagem dos manequins.
Os problemas de tiróide são “extremamente comuns” nos Açores e não se sabe porquê, podendo estes surgir devido a factores “genéticos e ambientais”. A própria questão do iodo é muito “complexa”. Apesar de vivermos à beira mar, “não temos uma boa ingestão de iodo”. Uma das explicações possíveis é termos uma “baixa ingestão de peixe” e de outros de produtos provenientes do mar. O rossio do mar traz o iodo para terra e este fica nas hortaliças, mas “chove muito”, logo há uma lavagem desse iodo. O pior é que “os problemas de tiróide podem provocar angústia nas pessoas, tumores e a compressão dos órgãos do pescoço”.
Quanto à obesidade, explica que embora a tendência seja para “aumentar”, Portugal não é “nada” obeso, em relação a outros países, como os Estados Unidos. Ainda estamos na fase de crescimento, de expansão e “é agora que temos de fazer alguma coisa, para aumentar a actividade física, sobretudo na infância e na adolescência”. O problema actual reside no “sedentarismo, pois as crianças passam muitas horas por dia em frente à televisão, à Internet e em jogos, o que significa que têm um baixo grau de actividade física, gastando muito poucas calorias”. Falando na preocupação em fazer e cumprir uma dieta, João Anselmo revela já haver muito “bom-senso” em relação à alimentação, pois “as pessoas estão informadas e sabem o que devem fazer”. O mais grave, lamenta, é haver um "grande desfasamento" entre o que sabem e o que conseguem fazer.
“Nas universidades, por exemplo, os alunos não têm qualquer actividade física programada. A escola preocupa-se em ter computadores, ensinar inglês, mas a actividade física é deixada para trás. Muitas pessoas que praticam exercício regularmente, chegam à universidade, têm uma grande carga de trabalho, descuram a actividade física e acabam por engordar”- enfatiza.
Na sua opinião, “os antioxidantes presentes em vários sumos não são bons para o organismo, mas sim para conservar o sumo”-explica, lembrando que alguns trazem benefícios para o organismo, mas muitos (os E's) são “tóxicos”. Por outro lado, os antioxidantes, que vêm na própria fruta são “importantes” para o organismo, como o ácido ascórbico (a vitamina C), que é um antioxidante "extraordinário" e um dos mais potentes. Definindo antioxidantes, afirma que “o organismo produz uma série de substâncias tóxicas no seu estado normal, os antioxidantes neutralizam estes os tóxicos, logo é bom que surjam e alguma quantidade. Agora, os que se adicionam aos sumos não têm qualquer interesse”.
Raquel Moreira
Public in Julho de 2008.