Vivemos um tempo difícil em termos de espiritualidade, muito marcado pela tecnologia, consumo e produção. É um mundo em que as vivências se vão tornando cada vez mais individualistas. O Padre Duarte Melo aborda esta e outras questões, dando-nos um quadro da situação da Igreja e da Religião, nos dias de hoje.
Duarte Melo, padre e director do Museu Carlos Machado, é natural do concelho do Nordeste, mas trabalhou sempre em Ponta Delgada. Oriundo de uma freguesia rural, transporto comigo todo um “imaginário da ruralidade e os valores que ainda exprimem e vivenciam esta ruralidade da boa vizinhança e da inter-ajuda”.
O convite para director do museu nasce, pois encontrava-se, na altura, a fazer o Mestrado em ‘Geologia e Património’ na Universidade dos Açores. “Sempre me interessei pelas questões do património, porque este transporta as marcas da identidade, é um documento que para ser lido precisa de ser cuidado e preservado” - salienta.
Duarte Melo avança ainda que nunca tinha pensado em ser padre e também não foi por geração espontânea. Explica que, na altura, recebiam umas cartas de sensibilização para a “aventura”. O que o conduziu ao Seminário, mais “numa perspectiva de ver o que era aquilo e de experimentar”. Já no Seminário, o trabalho que exerceu junto do professor Jacinto Monteiro, ajudou-o a descobrir a sua vocação.
Jacinto Monteiro era, por sua vez, um homem de história, a quem a vocação chegou já tarde. “Ele era professor de história e a dado momento fez um curso de cristandade, questionou a sua vocação e depois foi para padre”- enfatiza, descrevendo-o como um homem de “grande saber e simplicidade, um defensor dos mais fracos, dos pobres”.
Duarte Melo acrescenta que Jacinto Monteiro foi quem o ajudou a “despertar para a missão de uma Igreja e dos padres neste mundo de gente ferida, que também vive as suas contrariedades e precisa de conforto”-lembra, revelando ainda que se apercebeu de que o conforto só se cria “através do diálogo, com uma presença afectiva e efectiva”. Foi este o seu trabalho de seminarista, o de “reconfortar simplesmente (…) gente que não tinha liberdade, os reclusos, os presos”.
É aqui que reside a pastoral da Igreja, no “saber adivinhar” o sofrimento do outro numa relação empática. O mistério de Deus é um mistério de “empatias, a encarnação é precisamente a expressão máxima do ser empático, é pôr-se na pele do outro”. Foi precisamente o que Nosso Senhor Jesus Cristo fez. Por isso encarnou no mais “difícil possível, encarnou numa pobreza extrema e morreu ao abandono”, estando ao seu lado apenas Maria, Maria Madalena e um discípulo, João Baptista.
O director do Museu Carlos Machado relata que foi neste universo de empatia, que descobriu a importância de ser padre neste mundo “cheio de contrariedades e contradições”, percebendo também que a igreja no mundo “tem de ser uma contradição”, se se configura com Nosso Senhor Jesus Cristo. “Se a Igreja não se configura a Jesus Cristo, mas sim a sim própria, é o desastre total, é a Igreja dos arrogantes, dos poderosos, a que exerce o poder” - complementa.
E continua, esclarecendo que a Igreja de Nosso Senhor, a que nos propusemos no estar e no devir, é a Igreja que deve fazer esta empatia, “é a Igreja da Ressurreição que se deve pôr na pele dos crucificados e dos sofridos da vida e dos que acreditam em dias melhores”.
Duarte Melo afirma que os cristãos acreditam na ressurreição, opinando que estamos a viver “um tempo difícil em termos de espiritualidade”, muito marcado pelo factor da tecnologia, do consumo, da produção.
“É um mundo em que as vivências se vão tornando cada vez mais individualistas, que são muito mais sofridas”- ressalva, admitindo, por outro lado, que assistimos ao fenómeno de “procuras espirituais à mercê do transcendente”. E quase que estamos a atravessar este deserto do silêncio, da vida, para encontrarmos água. Lembra que no deserto não há água nem vegetação, mas “é uma procura”.
A seu ver, as pessoas estão, sobretudo, a procurar encontrarem-se com elas próprias, para darem sentido às suas vidas. Pois, “quem não dá sentido à sua vida, deixa-se morrer”.
O director do Museu via ainda mais longe ao afirmar que apesar das pessoas não aceitarem, o facto é que o lado espiritual faz parte do ser humano.
“Uma pessoa que não tem esta faceta, que não alimenta a sua esperança, entristece”- esclarece, dando o exemplo do ateu que “tem espiritualidade quando se interroga” sobre a sua vida.
“A espiritualidade é esta interrogação que cada um faz a si próprio. E a cristã é uma espiritualidade encarnada em Nosso Senhor Jesus Cristo. É uma espiritualidade no âmbito comunitário, apelativo. Daí, o sentido da eclésia, porque as espiritualidades deste mundo marcado pelo individualismo são espiritualidades individualistas, consomem muito para consumo próprio”- enfatiza.
Afirma ainda que ao longo da tradição da Igreja, a espiritualidade é “sempre no sentido da comunidade, comunitário, colectivo, esta dimensão fraterna é a mais que uma democracia”, em que todos nós participamos pelo Baptismo. Sacramento que nos permite “sermos iguais e sermos Igreja”. E cada um é chamado pelo baptismo a participar em funções, em serviço, em ministérios, pelos seus “carismas e capacidades”.
“A Igreja é o corpo de Jesus, por isso, todos são importantes na Igreja. Não há uns melhores do que outros. Quem for padre ou bispo não é mais santo, ou mais pecador, do que um individuo que é casado, divorciado ou retardado”-acrescenta.
Duarte Melo utiliza também o exemplo da vela, para explicar o seu ponto de vista. “Para que serve uma vela, se não for para a acender? Não tem função nenhuma. Acesa, dá luz e depois desaparece. É esta a função dos cristãos, pois esta é uma vida provisória. Estamos sempre em trânsito, a vida é constituída pelo efémero. Daí que nada deve ser concluído”- relembra, salientando “triste do cristão que dê a sua vida por concluída, esta deixou de ter sabor”.
E avança, dizendo que quando um padre, que ao sair do Seminário pensa não precisar de estudar mais, de aprofundar conhecimentos, de criar espiritualidade, torna-se um “robot”. Pode viver até aos 80 anos, mas limita-se a executar tarefas. “Morreu interiormente”.
Na sua opinião, as pessoas vão cada vez menos à Igreja, por várias circunstâncias. “Estamos marcados pelo individualismo, pelo conforto materialista que cria gente cada vez mais angustiada da alma. É quase uma doença da alma e depois é um tal comprar ansiolíticos e anti-depressivos. A própria espiritualidade procurada é, às vezes, baseada no individualismo”- ressalva, justificando serem “sinais do tempo”, que podem mostrar aos cristãos outras formas de serem mais humanos. Também podem ser circunstâncias “individualistas” de uma sociedade globalizada, um “desgaste ou linguagens espirituais que estão a faltar” ou, porque “as pessoas não se querem comprometer” perante a Religião.
“Mas, os cristãos empenhados, não o são pelo facto de irem à Missa, porque podem ir e não descobrir este sentido do compromisso transformador da vida”- alerta.
Quanto ao que pode ser feito para atrair mais jovens à Igreja, Duarte Melo afirma ser importante que os pais falem de Nosso Senhor em casa, que as catequeses sejam mais “ternurentas” e apresentem melhor Jesus. É necessário “descomplicar; apresentar o rosto de Jesus, que é um rosto atraente, um rosto da humanidade e acabar com as noções de castigo, de purgatório”.
Referindo-se às mudanças da sociedade, o director do Museu afirma que surgiram “novas pobrezas”. Em termos de mentalidade, a globalização atinge-nos a todos; são as transformações a nível europeu e político. Há sempre mudanças, numa “economia que remete para a marginalidade”.
“Esta economia não serve, é desumanista e injusta, cria na mocidade pobres e miseráveis, não é solidária, não serve o conceito do homem e não é este o projecto de Deus para a humanidade”- lamenta.
Quanto a diferenças entre os padres mais idosos e os mais jovens, em termos da imagem que transmitem, Duarte Melo afirma existirem diversas diferenças E “ainda bem que há, caso contrário vestiria tudo a mesma camisola” - refere, lembrando ser bom haverem várias perspectivas de ver a vida e o mundo, a imagem pastoral.
“Ninguém tem de julgar ninguém, temos simplesmente de acolher. Os sentimentos não se julgam. As coisas são como são, no momento em que o são. Ninguém pode viver carregado de culpas. Seria um infeliz, toda a vida”.
Para quem queira ser padre, o director do Museu aconselha apenas a considerarem-se “como Jesus Cristo e a descobrir o Evangelho”.
Quanto a uma eventual influência do celibato no estado social dos padres, Duarte Melo refere que o celibato tem de ser “compreendido em ordem ao bem comum”. Defende ainda que não haveriam mais padres, se os estes pudessem constituir família. Pois, a seu ver, o problema “reside na sociedade, que é muito egoísta e individualista”.
“Muitas pessoas casam tarde ou nem o fazem, porque têm medo de falhar e da promessa de eternidade que têm de fazer. A vida não é feita de “ses”.
Se pudesse mudar algo na sua vida, afirma que talvez corrigisse algumas coisas. Mas, por outro lado, na altura em que as fez pareciam-lhe as mais acertadas. Logo, “acho que não mudaria nada. E seria padre na mesma. Não estou nada arrependido”.
No que diz respeito à situação actual da Igreja e da Religião, Duarte Melo afirma ser uma Igreja que vive “com dificuldades, muito retalhada, que sofre com os problemas do mundo, pois está inserida na globalização e precisa de se configurar a Jesus Cristo”- conclui.
Raquel Moreira
Public in Terra Nostra, Março de 2008.
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