segunda-feira, 16 de junho de 2008

As pessoas sabem "muito pouco de tudo"

Fátima Sequeira Dias lança nova obra

Um professor do secundário que se interesse pela história dos Açores encontra nos meus livros o material necessário para motivar os seus alunos para a nossa história nos séculos XIX e XX”.
Segundo Fátima Sequeira Dias, as escolas têm “autonomia para encomendarem” os seus livros escolares, pois o manual “único”, utilizado pela família ao longo dos anos, “deixou de existir” - sublinha, em crítica aberta à renovação praticamente anual dos livros escolares. Situação que, na sua opinião, se deve não ao “avanço” da ciência, mas à “cobiça” das editoras e ao“laxismo do Ministério da Educação”.

Fátima Sequeira Dias, professora doutora e presidente do Conselho Científico da Universidade dos Açores, lançou um novo livro intitulado “Os Açores na História de Portugal”. O Terra Nostra falou com a autora sobre a sua vida, o livro e as potencialidades da obra a nível académico.
T.N.- O que nos pode dizer sobre esta nova obra?
FTD- “Os Açores na história de Portugal”, sob a chancela da prestigiada editora Livros Horizonte, reúne uma série de artigos académicos publicados (um deles é inédito) nos últimos anos.
Como é do conhecimento público, fui operada a um cancro de mama no final do mês de Dezembro de 2006. Depois, seguiram-se os longos e necessários tratamentos no IPO. Longe de casa e muito cansada pelos violentos tratamentos, não tinha forças para ir para o arquivo e para estudar – hábitos inerentes a todos os professores universitários.
Nunca esqueci, porém, uma norma de vida que me é cara, a de que a ‘ociosidade é mãe de todos os vícios’ e, nesse sentido, resolvi, com todo o vagar possível, reunir os meus trabalhos. Era um projecto ambicionado há alguns anos, mas que as exigências lectivas e os inúmeros trabalhos em mãos tinham sempre adiado. Nos longos meses fora da família (mas sempre amparada pelos amigos em Lisboa), preocupava-me pelo facto de os meus compromissos de trabalho estarem todos atrasados, mas brincava dizendo que estava desculpada, porque não deixava de estar ocupada enquanto esperava pela morte…
Afinal não morri e, no final dos tratamentos, tinha reunido os ensaios que considerava mais representativos do meu trabalho académico. Organizei, então, dois volumes. Um, sobre o percurso dos judeus nos Açores, que intitulei «Indiferentes à Diferença» e outro, sobre os designados ciclos da história dos Açores, cujo editor concordou em intitular «Os Açores na História de Portugal». Aquele beneficiou do apoio da DRCT – Governo Regional – e este, do apoio, quer da Assembleia Legislativa Regional, quer da FLAD.
T.N.- O que a levou a escrever sobre esta temática?
FSD- No próximo mês de Outubro festejarei cinquenta anos de vida. Concluí a minha licenciatura em 1981. Depois estive a fazer um mestrado em Bruxelas entre os anos lectivos de 1981 e 1983. Seguiram-se longas estadas no estrangeiro, nomeadamente na Suíça e na Noruega, onde na qualidade de bolseira prossegui os meus estudos. Defendi a minha tese de doutoramento em 1993, que, por sinal, recebeu o maior prémio internacional concedido às melhores teses de doutoramento em história económica no mundo, pela International Economic History Association, em 1998.
Desde que entrei na universidade em 1979 até hoje, nunca deixei de fazer curriculum. Gosto de destacar isto, porque não estive a fazer carreira. Tenho feito curriculum. Nunca trabalhei menos de 14 horas por dia. Os sábados e os domingos também são votados ao trabalho, ainda que sob outra rotina. Gosto muito de trabalho de arquivo e, por isso, também não dispenso mexer em ‘papéis velhos’ todos os dias! Deste modo, sempre publiquei bastante e sempre participei em muitos congressos.
Tenho uma biblioteca pessoal bastante interessante, que tem sido adquirida por mim. Não foi herdada!
Enfim, como nunca quis ser nem a melhor da minha rua, nem do meu bairro… sempre tive de trabalhar muito para fazer o curriculum que desejava.
Também nunca tive ambições de poder.
Foi com sacrifício que fui pró-reitora no tempo de Vasco Garcia e foi por motivos ideológicos que me candidatei a Presidente do Conselho Científico – para mostrar que uma mulher podia candidatar-se a um cargo (sempre ocupado por colegas homens) e que numa candidatura tanto se ganha, como se perde. Ganhei. Mas, não gostei da inúmera burocracia e da difícil gestão das susceptibilidades e melindres. Gosto mesmo é de ler, estudar (sublinhando), investigar e escrever.
Assim, estou a fazer curriculum há trinta anos. Graças ao curriculum, após inúmeras e exigentes provas públicas, sou professora catedrática desde 2005. Podia ter chegado mais cedo a esta categoria, mas não estive a fazer carreira. Estive a fazer curriculum.
Sempre trabalhei o século XIX açoriano. Interessa-me compreender por que motivo depois de os Açores terem tido uma elite extraordinária ao longo de oitocentos, que logrou integrar o arquipélago no mundo, foram interiorizando um progressivo e terrível complexo de pequenez e de perifericidade.
Ao longo dos anos, fui recolhendo elementos para a síntese que virá em breve!
Tenho inúmeros projectos de trabalhos. Não só concluir os que se atrasaram, fruto da inesperada doença, como prosseguir outros que têm sido pensados. Escrevo depressa, mas levo muito tempo a pensar!
T.N.- Na sua opinião as pessoas sabem muito ou pouco sobre a História de Portugal, Açores incluídos?
F.S.D- As pessoas sabem muito pouco de tudo, à excepção do futebol e da vida do Cristiano Ronaldo…
Julgo que a televisão portuguesa tem sido assassina neste ‘projecto’ de brutalizar as pessoas.
No entanto, pior do que saberem pouco… É pensarem que sabem tudo!
T.N.- Nas escolas, os Açores raramente ou nunca fazem parte do programa. Qual a sua opinião? E o que poderia ser feito para alterar a situação?
FSD.- Julgo que as escolas têm autonomia para encomendarem os seus livros escolares. O manual único que era utilizado por todos os filhos da família ao longo dos anos, deixou de existir. Não pelo avanço da ciência, mas pela cobiça das editoras e pelo laxismo do Ministério da Educação.
Pressupondo que há temas destinados a diversos anos lectivos, o Governo Regional poderia estudar a possibilidade de organizar uma colecção de cadernos temáticos que seriam oferecidos aos alunos a fim de serem integrados entre os conteúdos das diversas disciplinas. É um projecto educativo. Não é uma forma de sobrecarregar os orçamentos das famílias. Por exemplo, em vez de financiar um concerto de música clássica ou um arraial… manifestações, sem dúvida, importantes, oferecer às crianças açorianas alguns conhecimentos históricos, geográficos, geológicos, entre outros; do que é viver nestas ilhas seria muito, muito importante.
T.N.- O professor Teixeira Dias disse uma vez que falta coragem política para intervir nesta matéria. Qual é a sua opinião?
FSD.- O professor Teixeira Dias foi longos anos professor no secundário. Depois passou pela universidade onde fez um doutoramento em Ciências de Educação e reformou-se, salvo erro, como deputado da Assembleia da República na bancada do PS. Não sei em que contexto ele terá afirmado o que diz, mas parece-me que ele tem toda a autoridade para saber o que afirma. No entanto, em minha opinião, a questão apresenta-se de outra maneira.
Partimos do princípio de que os políticos são geniais e inteligentíssimos. Quando não realizam o que devem realizar é porque têm má fé. Temos tendência para ver uma conspiração em tudo. Por que não pensar que nunca ninguém lhes ‘vendeu’ a ideia de forma correcta? Por que não pensar que eles nunca pensaram no assunto? Por que não pensar que a ignorância é uma qualidade que está de forma igualmente repartida em todos os partidos políticos?
Ser político não torna ninguém culto e inteligente!
T.N.- “Os Açores na História de Portugal” é um bom documento de apoio?
FSD.- Julgo que sim. Não só pelo conteúdo, como pela forma como está escrito. Trabalho muito o processo de escrita, de forma a ser o mais acessível possível para todos os leitores. Os alunos dos últimos anos do secundário têm possibilidades de perceber o que estão a ler nos meus livros.
Sempre procurei seguir o modelo anglo-saxónico de escrita: frases curtas e incisivas.
Bem escrever exige bem pensar. Tenho um público bastante alargado, que aprecia o que escrevo. Gosto muito de dar aulas. Sou professora por escolha. Estou habituada a fazer-me entender e, nesse sentido, tenho as ideias organizadas para veicular e difundir os conhecimentos que considero importantes. Também na escrita respeito este princípio. Divulgo a ideia matriz do que pretendo, assente em muito trabalho de recolha de arquivo e fundamentado em leituras diversas. As notas de rodapé são um segundo texto, mas destinam-se apenas aos investigadores. Também os aspectos quantitativos, tão do agrado dos meus colegas economistas, podem ser dispensados por quantos abominam os números!
Um professor do secundário que se interesse pela história dos Açores encontra nos meus livros o material necessário para motivar os seus alunos para a nossa história nos séculos XIX e XX.
TN.- Quais os momentos mais marcantes da História dos Açores dentro da História de Portugal?
FSD.- Quanto a mim, privilegio a estada dos liberais nas ilhas antes do desembarque no Mindelo, nomeadamente a legislação de Mouzinho da Silveira, ‘a força demolidora do Antigo Regime’. Gosto muito também do período em que os militares continentais – as forças expedicionárias – se instalaram nas ilhas, porque ‘aqui também é Portugal’. De resto, como esquecer a luta autonomista de finais do século XIX com a denúncia da pátria-madrasta?
TN.- Projectos de novos trabalhos?
FSD.- Concluir todos os trabalhos atrasados. São alguns!
Lamento os atrasos acumulados, nomeadamente nas Memórias políticas de José de Almeida, o nacionalista açoriano.
Tenho muitos trabalhos em mãos. Doravante só me interessa o século XX.
Como grande projecto, vou começar a escrever a biografia de um grande empresário dos Açores. Um homem que cresceu economicamente com os Açores autonómicos. Uma referência para todos nós. Um exemplo.
É possível enriquecer nos Açores dos nossos dias. Os Açores continuam a ser uma terra prometida. É um projecto no qual estou muito empenhada, porque acredito no valor do trabalho e do mérito. Acredito que somos nós a construir as nossas vidas!
Detesto falsas vaidades e sociedades adormecidas na recordação dos antepassados. Não há dúvida de que alguns dos antepassados foram grandes… Mas não respeito os herdeiros que reproduzem a memória dos antepassados para serem importantes na sua rua… no seu bairro… Este é o maior flagelo dos Açores.
Assim, como fui pioneira na criação de uma consciência feminista, nos finais dos anos oitenta nestas ilhas, sendo motivo de escárnio de algumas feministas actuais que, finalmente, se juntaram à causa, espero também contribuir com os meus escritos para a consciência do que é ser açoriano no mundo global. Há trinta anos, eu decidi viver nos Açores, gostaria que os jovens de hoje ainda encontrassem razões para viver nos Açores.
Finalmente, não quero esquecer que o cancro mudou a minha vida. Não perdi o bom humor, nem a alegria de viver, mas aprendi duas grandes lições: a da compaixão pela dor dos outros e a da gratidão pelo que os outros nos dão. Assim, a par do curriculum que pretendo continuar a fazer… Gostaria que olhassem para mim constatando que há VIDA depois de um cancro.
Raquel Moreira
Public in Terra Nostra, Junho de 2008.
"Interessa-me compreender por que
motivo, os Açores foram interiorizando
um progressivo e terrível complexo
de pequenez e de perifericidade".

"As pessoas sabem muito pouco de tudo,
à excepção do futebol e da vida do Cristiano Ronaldo…
Julgo que a televisão portuguesa tem sido
assassina neste ‘projecto’ de brutalizar as pessoas".

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